História em
quadrinhos: coisa de criança? Um mero produto de consumo? Histórias
fracas e superficiais, como filmes de ação sem profundidade? Fantasia,
fuga da realidade? Nada disso!
As histórias em quadrinhos possuem uma grande profundidade. Os
super-heróis não são apenas seres com um uniforme legal, feitos para
vender bonecos, jogos e lancheiras. Existe algo de muito profundo nos
heróis clássicos das histórias em quadrinhos.
Super-homem e a mitologia
Super-homem e a mitologia
A mitologia é a fonte onde bebem os criadores de super-heróis. Desde
Gilgamesh, um dos mitos mais antigos de que se tem conhecimento, existe
no imaginário a noção de um ser parte humano, parte divino, dotado de
grandes poderes. Se pegarmos a mitologia grega, temos Hércules como o
exemplo mais popular de herói. E Super-homem tem várias semelhanças com
ele. Qual é o poder do semideus? Uma força incomensurável. E um dos
poderes do Super-homem, um dos mais notáveis desde sua criação, em 1932,
por Jerry Siegel e Joe Shuster? A força incalculável. Hércules era
filho de Zeus – pai dos deuses – e uma mortal. Seu sangue divino era o
que lhe conferia poderes. O Super-homem, a seu modo, também tem o poder
no sangue, só que em vez de ser divino, ele é alienígena, uma adaptação
aos tempos modernos e suas crenças. A analogia divina pode ser
observada, porém, no fato de que o Super-homem veio dos céus, e por isso
tem poderes. Hércules, a partir de seu primeiro trabalho, passou a usar
a couraça do leão da Nemeia como sua roupa e proteção, como retratado
em diversas de suas esculturas (ao lado). O Super-homem tem um uniforme,
usando inclusive um emblema no peito.
Falar do Super-homem é falar dos
super-heróis de uma maneira geral. O primeiro herói a figurar nas
páginas dos quadrinhos com superpoderes, o modelo para os super-heróis
seguintes. Ele representa basicamente as características fundamentais do
que torna um super-herói um super-herói. É seu arquétipo: justo,
altruísta, luta pela liberdade e pela verdade. Ele é um exemplo para os
personagens dos quadrinhos e para os leitores. Sempre agindo pelo bem e
usando todos os seus poderes em busca de uma sociedade melhor. Mais
importante que seus poderes é sua moral, afinal poderes os supervilões
também têm, o que faz um herói ser herói é sua ética e comprometimento
com a justiça.
A comparação Super-homem e Batman
Outro herói clássico dos quadrinhos,
muito popular há anos, é o Batman. Também engajado na luta pela justiça,
adotou critérios altruístas, mas possui algumas diferenças em relação
ao “pai dos super-heróis”. Batman não possui poderes. Seu intelecto e
treinamento é o que o tornam um herói. Quando a comparação entre
Super-homem e Batman vem à tona essa é uma das justificativas para que o
Batman seja considerado mais heroico. É fácil deter um assalto a banco,
por exemplo, quando se é invulnerável e sua força, insuperável. Batman,
se levar um tiro na boca, morre. Sendo assim, ele é mais corajoso.
Certo, mas o Super-homem também enfrenta adversidades que estão
compatíveis com ele, reais ameaças a sua integridade física. O poder é
justamente o que faz com que o Super-homem enfrente diariamente ameaças
que não estão na alçada do Batman, mais um justiceiro das ruas, um
combatente do crime. O Super-homem seria, por esse motivo, mais heroico,
pois seus poderes lhe permitem, em vez de salvar uma vítima do crime,
salvar o mundo inteiro de uma ameaça planetária. Por outro lado, Batman
precisou desenvolver suas capacidades e precisa treinar todos os dias,
enquanto o Super-homem nasceu com suas poderes, veio de graça. Enfim... a
lista dos defensores de um e dos defensores de outro é grande. Não
quero defender nem um lado, nem outro, considero que a reflexão é o que é
mais importante.
Ainda na comparação entre os dois, cabe
lembrar da pintura Escola de Atenas, de Rafael, em que estão
representados no centro Platão e Aristóteles (ao lado). Nela, Platão
aponta para cima, simbolizando o mundo das ideias, os ideais mais
elevados. Já Aristóteles, seu discípulo, demonstra com sua mão que está
mais no plano terreno, que se preocupa mais em trazer soluções que
tenham efeito nos problemas sociais em vigor. O que isso tem a ver com o
Super-homem e o Batman? O Super-homem está para Platão da mesma maneira
que Batman para Aristóteles. Enquanto o Super é um idealista, que
representa praticamente o ideal de perfeição humana, Batman é um
pragmático, que preocupa-se com problemas pontuais da sociedade. Ele não
está interessado em dar o exemplo, e sim em combater o crime, deter a
corrupção, enquanto o Super-homem representa a nobreza para que todos
possam seguir seu exemplo. Os dois, nesse sentido, se complementam.
O pequeno Bruce e o pequeno Buda
Se vamos falar de Batman, vale relembrar sua origem. O pequeno Bruce vivia uma vida feliz e contente com seus pais, donos de um império industrial na cidade de Gotham. Um dia, seus pais foram assassinados na saída do cinema por um criminoso. O pequeno Bruce conheceu então a dor e o sofrimento e isso mudou completamente sua vida. Passou a treinar para combater o crime. Agora eu contarei uma outra origem... Siddhârtha Gautama era uma criança feliz no reino de seu pai. Porém, um dia, ao passear pelos jardins floridos reais, conheceu um ancião, um enfermo e um defunto. Entrou então em contato com a dor e o sofrimento e isso mudou completamente sua vida. Fundou o budismo e passou disseminá-lo, no intuito de fazer com que as pessoas pudessem cessar suas dores. Não quero, por meio dessa comparação, dizer que Batman é tão nobre ou importante quanto o Buda. Apenas trago essa semelhança para demonstrar como os princípios do budismo podem ser vistos na figura do Batman. Cada um a seu modo, ambos buscam o ideal de minimizar a dor alheia. Batman sacrifica sua vida milionária, em que poderia ter tudo o que quisesse, fazer o que quisesse, para combater o crime e fazer com que menos pessoas sejam vítimas da violência, como ele foi, quando criança.
A semelhança não para por aí. No filme
Batman Begins, Bruce passou por um período de treinamento em algum lugar
na ou próximo à China. É notório no filme, nos quadrinhos e em qualquer
outro meio em que apareça o domínio do Cavaleiro das Trevas no campo
das artes-marciais, outro elemento da cultura oriental, assim como o
budismo. E em suas atitudes Batman segue, em certa perspectiva, o Nobre
Óctuplo Caminho, que seria, de acordo com o budismo, o caminho que
conduz à cessação da dor. Para citar alguns: retas intenções (estar
bem-intencionado em todos os atos), retas palavras (não falar nem de
mais nem de menos, apenas o necessário), reta conduta (de vida, sem
excessos, sem inércia), reta atenção, reta concentração...
Karma, dharma e o Homem-aranha
Karma e dharma são conceitos em geral
associados a reencarnação. Contudo, é possível pensar que esses
princípios podem ter efeito também em uma única vida. Dharma, em bem
poucas palavras, seria algo como a razão da existência de uma pessoa, o
caminho a ser seguido. Karma é um efeito gerado a partir do momento em
que a pessoa foge desse caminho. Agora peguemos Peter Parker, mordido
por uma aranha radiotiva. Ganhou poderes, e logo seu tio Ben avisou: com grandes poderes vêm grandes responsabilidades.
E o que Peter fez? Ignorou isso e passou a fazer fama e dinheiro com
seus poderes, em cima dos palcos de luta livre. Quando um assaltante
passou por ele no corredor, não se deu ao trabalho de tentar detê-lo,
embora para ele fosse muito fácil. Mais tarde, o mesmo assaltante, em
fuga, acabou matando seu tio. Esse foi o primeiro karma gerado na vida
de Peter, um karma com um propósito muito importante: mostrar a Peter
qual era sua missão de vida: ser o Homem-aranha. A partir daí Peter
passou a combater o crime e outras ameaças com seus superpoderes. O
dharma de Peter é ser um super-herói, a paritr do momento em que ganhou
superpoderes.
Esse conceito não se restringe à origem
do herói. Nas histórias do Homem-aranha são constantes os momentos em
que ele pensa em largar o uniforme e levar sua vida, o que seria muito
mais cômodo para ele. Cada um cuida da sua própria vida, por que ele tem
que cuidar das dos demais? Basta ignorar seus poderes, fingir que não
os possui. Esse é o tema central do filme Homem-aranha 2. Entretanto,
como retratado no filme e nos quadrinhos que o inspiraram, toda vez que
Peter tenta abandonar o uniforme o dever o chama. Alguém se fere, uma
ameaça se faz presente, a criminalidade aumenta... Peter é responsável
demais para fechar os olhos para isso. Largar o uniforme lhe traz
desconforto e sofrimento, não é tão fácil quanto ele imaginava.
Novamente, o karma lhe provoca para que volte ao seu dharma, ao seu
caminho, e seja o Homem-aranha mais uma vez.
X-men: preconceito e coexistência
O mote principal das histórias dos X-men
é claro desde o início: preconceitos. Os mutantes são seres que nascem
com superpoderes e por isso são discriminados. Existem outros com
superpoderes, mas só os mutantes são discriminados. Não faz muito
sentido, não é? Pois é, o preconceito não é algo que faça muito sentido.
É a rejeição àquilo que é diferente. É uma aversão a algo que é
diferente de você, ou a algo que uma pessoa quer que seja diferente
dela. Que sentido existe no preconceito contra pessoas cuja pela é
negra? Menos do que em relação a pessoas que podem dominar sua mente com
um superpoder, ou destruir sua casa com uma rajada ótica.
Apesar do preconceito, Charles Xavier tem o sonho de uma coexistência
pacífica entre mutantes e humanos sem poderes. Fundou uma escola que
serve de guia para jovens mutantes, onde eles aprendem não apenas a
controlar melhor seus poderes, mas também a ideologia da tolerância, a
concepção da harmonia social. Sem preconceitos, sem conflitos, mesmo que
pessoas normais (não são todas) tentem apedrejar os mutantes nas ruas.
Bater de volta não é solução. Seu arqui-inimigo, Magneto, reage de
maneira antagônica. Para ele, é guerra! Se são atacados, os mutantes
devem atacar de volta, impor-se, lutar pela comando das sociedades, pois
eles, em sua visão, são superiores, o próximo degrau da escala
evolutiva. Em outras palavras, enquanto Xavier é um agente da paz e da
harmonia, Magneto é um agente da guerra e da imposição.
Os vilões também nos ensinam lições
Qual é a importância dos vilões nas
histórias? Por que eles existem? Os heróis nos dão o exemplo a ser
seguido, então os vilões nos demonstram o exemplo a não ser seguido.
Magneto representa um conceito sofisticado de vilão. Não é perverso,
completamente mal. Nem é simples, desses que simplesmente querem dominar
o mundo. Magneto tem um ideal e luta por ele. Em sua visão, não há como
evitar uma guerra entre humanos e mutantes, e por esse motivo é melhor
atacar logo, antes que seja tarde demais. Mais real, não acham? Quando
criança, Eric e sua família sofreram nos campos de concentração nazista
(como retratado na obra ao lado: Magneto - testamento). Isso lhe gerou
um grande trauma e o medo de que acontecesse novamente. A partir do
momento em que desenvolveu seus poderes, tomou como meta que nunca mais
seria subjugado. Assim, quando a população e o governo, procurando um
bode expiatório, passaram a perseguir mutantes, Magneto passou a atacar a
sociedade. Sem perceber, Magneto se tornou aquilo que mais temia. Se
Hitler é quem personifica o nazismo, com seu discurso de superioridade
racial, Magneto tornou-se exatamente o que mais odiava, pregando o
discurso da superioridade mutante.
Vilões simples, que são essencialmente
maus ou elaboram planos de dominação mundial, são fáceis de se perceber,
e é muito difícil que nos identifiquemos com eles. Por outro lado,
quando se analisa Magneto e outros vilões mais elaborados, nós podemos
ver como uma pessoa pode se tornar um vilão sem querer, sem perceber.
Vale lembrar também que o vilão é, por definição, o oposto do herói. Se o
herói é definido, entre outras características, por seu altruísmo, o
vilão é caracterizado por seu egoísmo.
Além de demonstrar a riqueza que existe
nos super-heróis e em suas histórias, essas reflexões servem para que
nós nos situemos enquanto cidadãos do mundo e seres humanos. Nos
quadrinhos existem basicamente três tipos de personagens: os heróis, os
vilões e os figurantes, pessoas de pouca ou nenhuma importância para a
história, sempre a mercê dos perigos, esperando serem salvos. Cabe a nós
perguntar: com quem que nós mais nos identificamos? E com quem que nós
mais queremos nos identificar?
Livros sugeridos
Os super-heróis e a filosofia, William Irwin (coordenação);
Batman e a filosofia, William Irwin (coordenação);
Nossos deuses são super-heróis, Christopher Knowles.
Filmes sugeridos
Super-homem;
Batman Begins;
Homem-aranha 1 e 2;
X-men (a trilogia).
Quadrinhos sugeridos
Terra-X (Marvel);
Marvels (Marvel)
Os maiores super-heróis do mundo (DC);
Reino do amanhã (DC).
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